Transferência do Músculo Trapézio para rotação externa do ombro: estudo anatômico
A rotação externa do ombro é um movimento essencial para as atividades diárias com os membros superiores e sua limitação causa grande comprometimento funcional. A diminuição da rotação externa é causada por lesões do plexo braquial (traumáticas ou obstétricas) e ruptura extensa do manguito rotador.
Em lesões extensas e irreparáveis do manguito com limitação da rotação externa, a transferência do tendão do grande dorsal é uma das opções mais usadas em pacientes com menos de 65 anos sem sinais de alterações degenerativas da articulação glenoumeral, e apresenta bons resultados relativos a ganho de elevação e diminuição da dor.
No entanto, a transferência do grande dorsal tem limitações. O vetor de ação do músculo não é similar ao infraespinhal e o ganho de rotação externa é limitado. Na presença de lesões do subescapular, a transferência pode levar a subluxação do ombro, dor e limitação funcional. Por isso é contraindicado como único tratamento.
Uma alternativa ao grande dorsal, é transferir a porção inferior do trapézio. Tal opção é indicada para casos de paralisia obstétrica e lesões do plexo braquial. O vetor de ação da porção inferior do trapézio é a mais próxima do músculo infraespinhal e os resultados de ganho de rotação externa são promissores. No entanto, o alcance distal do tubérculo maior ainda não foi estudado, e implica na necessidade de enxerto do tendão e imobilização para abdução e rotação externa. A associação da transferência da origem da porção inferior do trapézio poderia aumentar o alcance distal da inserção e não foi descrito na literatura anteriormente.
O objetivo desse estudo é definir os parâmetros anatômicos e a viabilidade de três técnicas de transferência de trapézio, em cadáveres: a porção inferior em conjunto da transversa, a porção inferior isolada, e a dupla transferência da porção inferior (origem e inserção).
MÉTODOS
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da nossa instituição sob o número 949. Foram utilizados doze ombros de seis cadáveres selecionados de forma aleatória.
Três técnicas diferentes foram realizadas para cada ombro. Em sequência, e sempre na mesma ordem, realizamos a transferência da porção inferior junto da parte transversa (Grupo 1), transferência isolada da porção inferior (Grupo 2) e transferência da origem e da inserção da porção inferior (Grupo 3). Após cada transferência, os parâmetros anatômicos foram avaliados.
Técnica cirúrgica
Os cadáveres estavam posicionados de bruços, sendo realizada uma abordagem posterior ampla.
Para o grupo 1, as porções inferior e transversa do trapézio foram isoladas e separadas da porção superior na espinha da escápula. A inserção foi ressecada em conjunto com a aponeurose distal do trapézio, sem incluir o tecido fascial do deltoide ou fragmentos ósseos. O canto posterolateral do acrômio foi usado como local do parâmetro de ressecção lateral. O tendão foi reparado por sutura contínua não-absorvível, e o músculo foi levantado e separado do infraespinhal, do deltoide e do romboide.
A parte inferior da transferência foi determinada pela margem inferior da escápula. O nervo acessório foi identificado e marcado, assim como outros pontos de referência descritos abaixo, e então a origem do deltoide na espinha da escápula foi solta. A viabilidade da transferência do tubérculo maior foi avaliada e considerada positiva quando o tendão alcançava aspecto posterior na topografia da inserção do infraespinhal.
O trapézio inferior do grupo 2 foi separado da porção transversal e transferido de forma isolada. Por fim, no Grupo 3, a origem do trapézio inferior próxima dos processos espinhosos foi separada e então conectada à margem medial da escápula por meio de suturas transósseas. As fases envolvendo reparação da porção distal, dissecação de tecidos moles e avaliação da viabilidade da transferência do tubérculo maior foram realizadas da mesma forma para todos os grupos.
Resultados e variáveis anatômicas
Desfecho primário: Viabilidade de transferência com o braço aduzido durante a rotação interna (mão no abdômen) e retração máxima da escápula.
Desfechos secundários: Viabilidade de transferência com o braço aduzido durante a rotação interna (mão no abdômen) e retração máxima da escápula.
Parâmetros anatômicos: Os parâmetros anatômicos avaliados antes das transferências e medidos em máxima protração da escápula são apresentados na Tabela 1.
A integridade do nervo acessório espinhal foi avaliada antes e depois da realização das três transferências tendinosas.
Análise estatística
Um tamanho de amostra a priori foi calculado com base em 80% de poder e 5% de erro Tipo I. A hipótese do estudo é que a técnica dos grupos 2 e 3 será viável para sutura em cerca de 30% da amostra e a técnica do Grupo 1 em pelo menos 90%. Assim, determinamos que seriam necessários 10 ombros. Para este cálculo, utilizamos a calculadora online www.stattool.net.
A normalidade dos dados foi testada utilizando o teste de Shapiro-Wilk e a homogeneidade dos grupos foi determinada utilizando o teste de Levene.
Variáveis categóricas e contínuas foram apresentadas como médias e desvios-padrão (dados paramétricos) ou mediana e percentis (dados não paramétricos). Para os desfechos primários e secundários (correlação entre viabilidade das várias técnicas de sutura), foi utilizado o Teste de χ2 (para dados de natureza categórica). O software SPSS 19.0 para Windows foi usado para análise.
RESULTADOS
Cinco cadáveres eram do sexo masculino e um era do sexo feminino. Idade, altura e peso médios eram 63 ± 11,77 anos, 165,66 ± 4,69 cm, e 56,2 ± 5,53 kg, respectivamente.
Os parâmetros anatômicos medidos antes das transferências tendinosas para a protração máxima da escápula são apresentados na
Tabela 2: O nervo acessório espinhal e o pedículo vascular associado foram localizados medialmente, em média, de 3,25 ± 1,63 cm para a borda medial da espinha da escápula.
Para o desfecho primário do estudo: viabilidade ou não da transferência, com os membros superiores em adução e com rotação interna, escápula em retração completa obteve-se: No Grupo 1 (transferência da inserção distal das porções inferior e transversal do trapézio), a viabilidade de sutura em 42% dos casos (5/12). No Grupo 2 (Transferência apenas da porção inferior do trapézio), o tendão não atingiu o tubérculo maior em nenhum dos casos. A sutura foi possível em 58% dos casos (7/12) do Grupo 3 (transferência da origem e da inserção da parte inferior do trapezoide).
Ao comparar o Grupo 1 com o Grupo 3, não foram encontradas diferenças de significância estatística quanto à viabilidade da transferência (Teste de Fisher, p = 0,558). Notou-se que o Grupo 2 não obteve viabilidade em todos os casos, sendo a pior técnica de escolha para este procedimento sem o uso de enxerto de tendão.
No Grupo 1 a transferência foi viável em 17% (ombros 2/12) quando avaliamos a viabilidade da transferência, com a porção superior em adução e com rotação interna, escápula em máxima protação. No Grupo 2, o tendão não alcançou o tubérculo maior em nenhum dos casos. No Grupo 3, a sutura foi possível em 42% dos casos (5/12 ombros). Ao comparar o Grupo 1 com o Grupo 3, não foi encontrada diferenças de significância estatística (teste de Fisher, p = 0,47).
Observamos que após os procedimentos cirúrgicos dos grupos 1 e 2, com relação à integridade do nervo acessório após a conclusão das transferências musculares, houve integridade do nervo em todos os casos, mas uma alta taxa de lesão nesse nervo foi relatada (11/12 ombros) após as transferências do grupo 3.
DISCUSSÃO
Transferências musculares são muito usadas para restaurar a função do ombro em pacientes com paralisia obstétrica, lesões do plexo braquial e rupturas não corrigíveis do manguito rotador. Para fortalecimento e obtenção de maior amplitude de movimento na rotação externa, indica-se a transferência do músculo grande dorsal e/ou do redondo maior para a região superolateral da cabeça do úmero ou no cortéx lateral do úmero proximal, com resultados razoáveis em termos de ganho de rotação externa.
Alguns cirurgiões acreditam que a transferência desses tendões do manguito rotador contribui apenas para estabilizar a cabeça do úmero através de efeito tenodese porque estes tendões são fortes rotadores internos e possuem pequena conversão faseada após a transferência e o vetor de ação difere do dos rotadores externos no ombro.
Além disso, em muitos casos de paralisia obstétrica ou de lesão traumática do plexo braquial em adultos, a inervação destes músculos também foi lesionada e não são passíveis de transferência.
Uma transferência da porção inferior do trapézio para a inserção do infraespinhal foi recentemente descrita, e exibiu resultados promissores. Esta transferência tem vantagem, em relação aos músculos grande dorsal e redondo maior, por possuir um vetor de ação mais próximo do que o apresentado pelos rotadores externos do ombro. Hartzer et al. descobriram que a zero graus de abdução, a transferência do trapezoide inferior é, ao que parece, mais eficaz na restauração do movimento de rotação externa se comparada à transferência do músculo grande dorsal. Ademais, durante o movimento de rotação externa do ombro, o músculo trapézio tem uma contração fásica com os músculos infraespinhal e redondo menor, o que facilita a reabilitação de pacientes submetidos a esta transferência.
No entanto, esta transferência tem algumas limitações. Elhassan et al. necessitaram de enxerto tendinoso para realizar a transferência da inserção do tendão da porção inferior do músculo trapézio no tubérculo maior do úmero. No nosso trabalho também falhamos em obter este tipo de transferência sem usar enxerto em todos os casos (Grupo 2). Esta constatação é justificada pela grande distância do ângulo superolateral da escápula em relação à inclusão da porção inferior do músculo trapézio, em média 9,25 ± 0,73 cm.
Bertelli realizou a transferência da inserção do trapézio inferior, estendendo o tendão até a fáscia que cobre a espinha da escápula até o acrômio. Além disso, não fez a sutura da transferência no tubérculo maior, mas manteve-a no tendão infraespinhal com o membro superior em rotação externa máxima. A transferência deste autor é muito semelhante ao nosso grupo 1, em que obtivemos 17% das transferências possíveis sem o uso de enxertos com a protração máxima da escápula e em 42% com a escápula em retração total. Com rotação externa e/ou abdução do membro superior, é provável que teríamos um maior número de transferências possíveis sem usar enxerto tendinoso.
O presente estudo descreveu uma nova técnica de transferir a porção inferior do trapézio para os rotadores externos do ombro através da separação da origem dos músculos dos processos espinhosos e suturando-a na margem medial da escápula, além da inserção da porção inferior do trapézio sendo suturada na margem inferior do tubérculo maior do úmero (Grupo 3). Neste grupo, encontramos maior viabilidade de sutura, 58% com a escápula em retração e 42% com escápula em protração. Contudo, ao comparar os grupos 1 e 3 não encontramos diferenças de significância estatística em relação à viabilidade da transferência, não importando a posição da escápula. Devido ao número limitado de ombros em que as transferências tendinosas foram realizadas, tal ausência de diferença pode representar um erro tipo II.
Apesar de permitir a transferência muscular sem o uso de enxerto, encontramos uma alta taxa de lesão ou tensão excessiva no nervo acessório espinhal (11/12 ombros) com a técnica do Grupo 3. É provável que fazer esta transferência exigiria uma dissecção vasculo-nervosa adicional para se obter uma maior mobilização e evitar lesão.
Este estudo tem algumas limitações. Devido à rigidez dos cadáveres, fomos incapazes de testar a viabilidade de transferências musculares com membros superiores em rotação externa e abdução, o que talvez aumentaria a probabilidade do tendão muscular do trapézio inferior e/ou da porção transversal alcançar o tubérculo maior do úmero. Também não pudemos observar se as transferências musculares levariam a alguma isquemia muscular por compressão do pedículo vascular.
Não foi possível determinar a tensão muscular adequada para manter a transferência e assim avaliar seu efeito no movimento das articulações glenoumerais, uma vez que se trata de um estudo anatômico em cadáveres. Existem alguns estudos clínicos sobre este tema, demonstrando um aumento considerável na amplitude da rotação glenoumeral externa.
As transferências da inserção das porções inferior e transversal do trapézio foram viáveis em 42% dos casos quando a escápula estava em retração; portanto, esta técnica pode representar uma alternativa ao uso de enxertos ou permitir o uso de enxertos mais curtos. Mas nosso estudo anatômico mostrou que a inserção do tendão da porção transversal do trapézio exibia 50% da largura do tendão da porção inferior. Testes biomecânicos e clínicos são necessários para investigar a resistência da transferência, bem como sua capacidade de gerar movimento de rotação externa da articulação glenoumeral.
CONCLUSÃO
A transferência da origem e da inserção da porção inferior do trapézio e a transferência da inserção distal das porções inferior e transversal mostraram os melhores resultados quanto à viabilidade de sutura do tubérculo maior sem o uso de enxertos tendinosos. Ainda assim, a transferência da origem e da inserção do músculo trapézio inferior mostram uma alta taxa de lesão do nervo acessório espinhal.
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